domingo, 30 de outubro de 2016

Inéditos & inacabados: mediação de Mário Neves

I&I: Mário Neves na condução da conversa (foto Sueli Kimura)

A partir de um tema muito sugestivo, "Janela", o poeta e performer Mário Neves (convidado para mediar a roda literária deste mês), conduziu com ares de realeza o encontro. Antes porém, Sueli Kimura proporcionou-nos momentos de relaxamento através de aluns exercícios respiratórios e físicos, seguidos por uma provocação: recitar diversos trava-línguas, tudo regado a café, sucos, chás, doces e salgados que o povo trouxe sem dó, para nosso deleite. 
Na seuqência, os textos e fotos. Desfrutem! Degustem!

Paulinho Dhi Andrade

"MEU REFLEXO"
Abri minha janela agora, e a única coisa que consegui ver foi um abacateiro triste e só lá no quintal da frente. Sei que somos parecidos porque usamos a mesma janela como espelho!
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Sueli Kimura:

(texto 1)
Há muito tempo
Eu saindo da adolescência
Um amigo poeta me disse
que, fosse eu uma fruta
seria um pêssego carnudo
Para comer
Sentindo o aroma
Mordendo lentamente
Sujando a boca
Foi tanta delicadeza que
se ele quisesse
Teria aberto a janela
Da minha virgindade..

=*=*=*=

(texto 2)
(acróstico)
Jardim florido
Nele habitam
Lagartas e borboletas

=*=*=*=

(texto 3)
Olhar perdido
Janela ou porta
Qual escolher?

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Luka Magalhães

(texto 1)
estranha vidraça
que nos mostra a alma
........................

(texto 2)
alma imaculada
que trespassa
o vidro

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Rosinha Morais:

(texto 1) Intervalo
Sempre que estou ao teu lado Sinto a plenitude De uma vida completa Sempre que estás ao meu lado Sinto a felicidade Que em mim desperta O sempre é tão volátil Ainda assim sublime Porque o mundo é um instante Que cabe na loucura Do ser profano Que não interpreta sonho Vive sua realidade Sem promessas de paraíso Nem medo de castigos Mas com a certeza De ser amado E amar Ainda que o amor atravesse O intervalo do pecado.
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(texto 2)
Distante
Está tão escuro aqui dentro, e frio e silencioso. Falo comigo mesma e é como se os meus pensamentos gritassem. Mas me sinto confortável. Você pode achar loucura eu me sentir confortável quando acabo de falar como é aqui dentro. Porém, eu realmente estou confortável.  Me incomoda apenas quando meu pensamento fica falando, nem sempre gosto do que ele fala, porque algumas vezes ele me diz para eu me mover, olhar para fora, respirar um novo ar. Como poderia fazer isso? Ele não entende que eu tenho medo. Sei que você vai me julgar. Todos me julgam, mas eu não inventei esse medo. Teve um tempo bem diferente, onde tudo era risos e luz e calor. Quando penso nesse tempo me encolho mais aqui dentro, porque o frio e a escuridão aumentam, aí eu calo o pensamento e volto para o conforto do meu silêncio.
Se minha voz ainda existisse eu contaria para você. Ela se perdeu naquele dia. Eu gritei tanto, pedi que alguém me ajudasse, os meninos riam e as meninas pediam para eles continuarem porque eu estava gostando. Não importava o quanto eu dissesse não, não importava o quanto eu chorasse, elas riam, eles riam, dançando em volta de mim.  Não sei quanto tempo durou, não sei mais se foi real ou fantasia. Lembro da última palavra que eu disse, do meu último grito: Mãe!
Quando todos foram embora, eu continuei lá, meu corpo doía e eu sentia frio, eu acho, porque tremia, só havia uma fonte de calor, que escorria entre minhas pernas. A noite tornou-se madrugada e a madrugada dia. Eu continuei lá. O sol batia em meu rosto, mas eu não sentia, o frio não passava, a dor insistia, o sangue secava, meu coração secava, meu mundo secava. Não havia mais lágrimas, não havia nada, apenas eu. Eu continuei lá. Acho que desmaiei, ou algo parecido, não tinha sede ou fome, apenas frio e dor. O dia voltou a se tornar noite, a noite madrugada e um novo dia. Eu continuei lá. Não sei quanto tempo eu continuei lá. Sei que alguém me viu. Eu tive medo e vergonha e tentei me arrastar. Depois ouvi muitas vozes, arrancava a terra com as mãos tentando fugir. Reconheci uma voz, era a minha mãe. – Mãe! – Gritei, mas minha voz tinha sido silenciada, ela não me ouvia.
Ela não me ouvia e chorava.
Pela primeira vez, naqueles últimos dias, eu senti um calor bom, o calor das mãos e dos lábios dela, um beijo e uma carícia e a sensação que enfim eu estava segura.
Foram dias de entradas e saídas. Muitas pessoas. Elas conversavam, faziam perguntas, queriam saber detalhes, nomes e muitas coisas que eu não entendia. Minha mãe não saiu do meu lado, eu não comia e ela não comia. Algumas pessoas da família apareceram, algumas amigas da minha mãe apareceram, meu pai apareceu, os parentes do meu pai, meus professores. Outra vez eu não tinha ideia de quanto tempo fiquei ali, naquele hospital.
Quando cheguei em casa, minha mãe, sempre ela, cuidou de mim, tentando me trazer de volta, ela pedia, implorava por sua menina, não sabia que a menina havia sido destruída e que só restava eu. As visitas continuaram por um tempo, mas aos poucos foram rareando, apenas ela continuou, incansável, tentando levar uma vida normal, mas também nunca mais voltou a ser a mesma. Convidava pastores, padres, psicólogos, terapeutas, estudantes. Lia para mim, tudo o que aparecia ou parecia que despertaria o meu interesse. Qualquer nova pesquisa que saia, ela ia atrás. Nunca entregou os pontos. Me dizia sempre que eu deveria abrir algumas janelas por onde eu pudesse escapar, mesmo que por alguns minutos. Que eu era sua passarinha que adorava cantar e voar, que eu deveria tentar mais uma vez. Ela não entendia que em meu casulo não existiam janelas. Que não havia mais canto, não existia mais asas. Não é que eu não queira sair, abrir a janela e sentir o sol, ouvir o canto dos pássaros ou o uivo do vento. É só porque, mesmo aqui, só existe uma certeza. Eu continuei lá.

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Manogon:

"Pelo vidro à espera da esperança"

São nove horas e quarenta e cinco minutos de uma manhã ensolarada. O dia raiou cedo e tão logo se apresentou, parece que trataram de acender o forno, pois o clima está quente e extremamente abafado. Mal iniciei os afazeres diários e já tive de interromper para tomar um banho quase frio. Nada pior que suor escorrendo no rosto inteiro, deixando a camiseta em situação calamitosa ou então, escorrendo pelas costas até chegar no rego da bunda.

Isso não tem nada de mais. Afinal, em dias quentes assim, impossível ficar com um banho só ou sem banho algum. Mas não eram nem 7 horas e já estava no segundo banho. Peguei minha sombrinha e meu chapéu (recomendações de minha mãezinha, que mesmo eu já sendo adulta, insiste em me tratar como se tivesse 9 anos) e saí na direção da padaria.

Perdida em pensamentos, andei pelas calçadas pacatas da minha modesta cidade interiorana, daquelas que todos se conhecem ou sabem quem é quem. Vi um certo agrupamento mais adiante, mas como estava com pressa não me interessei. Comprei meus pães e já ia saindo quando a dona Maria de Lourdes, uma velhinha simpática, mas fofoqueira de tudo, não resistiu e me veio com o famoso "Você viu o que aconteceu?" Claro que não, pensei. Mas já sabia que o relato em pormenores viria em seguida.

Trinta minutos depois estava indo ao encontro do pequeno alvoroço. Todos falavam entre si e, por vezes, um apontava na direção da casa. Fui me aproximando e já veio a Madalena, com cara de sofrimento - será que está tudo bem? - mas como eu estava sem a bola de cristal, não consegui adivinhar para responder. Ela morreu? - indagou outra. Que nada, deve estar dormindo ou se mandou. - sentenciou outro. Ali, em frente à casa de dona Gertrudes, cada um tinha uma opinião, mas ninguém tinha coragem de bater à porta ou entrar lá. Não por ela ser má, mas por outros motivos.

Dona Gertrudes é uma solteirona muito conhecida no bairro. Sem parentes, sem amigos que frequentem sua casa, presença quase imperceptível. Os pais faleceram quando ela ainda era jovem e, desde então, passou a viver sozinha. Sempre muito recatada, com roupas tão discretas que mais pareciam dos filmes de época. É o tipo de pessoa que entra e sai do mundo sem deixar muitos vestígios. Creio que até poderia ser assim, não fosse por um acontecimento não muito distante no tempo. Coisa de uns 5 anos, mais ou menos.

Gertrudes sempre manteve hábitos precisos, executados impreterivelmente nas mesmas sequências, como se fossem programados para acontecer mesmo que não houvesse algum comando para tal. Acordava cedo, arrumava a casa (como se precisasse!), saía em passos apressados até a padaria onde tomava um café básico com um pão fresco com pouca manteiga. Trabalhava na biblioteca municipal, no setor de arquivo, seu mundo. Ali, em companhia de livros e papeis tinha tudo de que precisava, nada mais. Dali voltava para casa, preparava sua comida ouvindo uma radinho de pilha, sentava ante a janela para apreciar o por do sol, hábito herdado de sua mãe, jantava em frente a TV e dormia cedo, preparada para reiniciar a programação no dia seguinte. Gostava de trabalhar até mesmo em fins de semana, pois não tinha o hábito de viajar ou passear pra fora da cidade, haja vista que os pais morreram em um acidente com o ônibus de turismo. Assim sendo, juntava sua paixão com o oportunismo do seu chefe, funcionária exemplar a um custo baixo. Uma das poucas vezes que saiu de sua rotina foi o motivo que a levou a ser o centro dos questionamentos de hoje. 

Seu Cléber, o chefe, mandou que fosse até a cidade vizinha para recolher uma papelada que pertencia ao centro de conservação dos parques. Como ela não possuía carro e tinha trauma de ônibus, pegou sua bicicleta e saiu pela estradinha. Só que chegou o horário previsto da volta e nada de Gertrudes aparecer. Passaram-se uma, duas, três horas e nada! Seu Cléber estava prestes a fazer o sacrifício de tirar seu carro da garagem para ir atrás dela quando o telefone tocou. Ela sofreu um acidente, mas estava bem, apenas em observação.

Oligário Meira, um representante comercial espalhafatoso da fabricante de barcos Maresia, foi até a cidade buscar uma encomenda. Distraído e ocupado em comer um lanche, olhar o itinerário e dar pancadinhas no relógio de pulso para conseguir ver as horas direito, não conseguiu perceber a bicicleta que fazia uma curva acentuada e a acertou, levando sua condutora ao chão. Ele ficou tão atrapalhado, sentido com o ocorrido, que se dispôs a acompanhar o trâmite todo do socorro, internação e o que mais precisasse. Ainda mais quando soube que a moça não tinha família.

Desses dias, entre idas e vindas, ficaram a amizade - que finalmente conseguiu fazer -, a lembrança da forma atabalhoada que tudo se deu, e um laço muito forte. Não demorou muito para que Olegário a pedisse em namoro. Tradicional como sempre foi, Gertrudes, exigiu que eles namorassem em público, o que, é evidente, gerou muitas conversas em rodinhas, muitos dedos apontados, muito assunto para os fofoqueiros de plantão.

Em pouco tempo, o namoro na praça já não era regra e sim, exceção. Sua rotina de fim de semana incluía ficar à espreita na janela, aguardando a chegada de Olegário. A molecada já não fazia mais graça porque ela já não era mais "a solteirona", "encalhada". Tudo parecia bem e se encaminhando para o matrimônio. E foi aí que o doce desandou. Olegário fez uma investida, querendo algo mais que uns beijinhos, ela recuou e o expulsou de casa, dizendo que "não era dessas" e que só perderia a virgindade depois de casar. Virgindade! Naquela idade! Ela nunca... nunca..., ficou a mil a cabeça de Olegário. Ao mesmo tempo que deu um certo prazer de ser o primeiro, entrou em pânico. E se ela estranhasse e não o aceitasse? Se saísse correndo pela rua? Vexame! E se tivesse um piripaque e morresse ali mesmo, na cama, na lua de mel? Tentou levar adiante, compro alianças, marcou casamento... ela comprou vestido de noiva, fez planos de reformar a casa e até, quem sabe, convidar a vizinhança.

Faltavam poucos dias. Olegário, na tentativa de evitar maior vexame, tentou agarrar Gertrudes novamente. Afinal, quem segura desejo assim tanto tempo? Já não eram crianças e estavam comprometidos? Ora bolas! Que mal tem? Pensava em tudo isso, mas não foi bem recebido. Discutiram feio e ele saiu batendo a porta. Ela tentou ir atrás pedindo pra ele voltar e conversar. Não teve jeito. Ele disse que talvez voltasse. E assim ficou. Ela acreditou.

Mas Olegário, seja por ter se livrado de seus medos, seja por não querer saber mais dela, não apareceu no dia seguinte, nem no outro dia, na outra semana, no outro mês, ano... anos. Gertrudes, com a frustração, caiu em desgraça e não queria saber de mais nada. Nos primeiros dias chorava na janela, esperando por ele. No dia que seria o casamento, ela se vestiu de noiva e ficou ali, diante da janela, esperando, esperando, esperando. Uma semana se passou e ela ainda estava com o vestido, já todo amassado e rasgado em alguns pontos por ela se enroscar nas coisas. Seu Cléber a procurou, insistindo que ela reagisse. O máximo que conseguiu foi que trocasse o vestido e, assim, teve de fazer o que não queria, entregar sua demissão.

De casa de solteirona-ex-noiva-quasecasada a casa da tia louca foi apenas questão de detalhes e de alguns moleques bagunçando após a saída da escola. Ela já não saída de casa, talvez na esperança dele voltar a qualquer hora, o receio de não achá-la, talvez por não querer ver ninguém e rirem dela. Comia o essencial. Mesmo assim, não perdeu o hábito de sentar-se à beira da janela para supostamente apreciar o por do sol e, claro, esperar Olegário.

Mesmo depois desse tempo, nunca a janela deixou de ser aberta. Exceto nesta manhã, que ninguém a viu abrir as 5 horas, nem a silhueta da dona dela no vidro aos primeiros raios solares. E como tudo é novidade em cidade pequena, é por esse motivo que agora, faltando poucos minutos para as 10 horas da manhã, forma-se uma legião de curiosos em volta da casa dela, inclusive eu, que não sou de ferro, né.

Já quase meio-dia. Seu Cléber, o mais próximo de um conhecido, foi chamado. Ele tentou chamar. Nada! Esperaram a guarda. Estavam atendendo uma emergência. A fuzarca aumenta, até que seu Cléber não suporta mais. A janela, que até então serviu de observatório do mundo externo e das belezas do céu, transforma-se em porta de acesso, é forçada e arrombada.


Deitada em sua cama, vestida de noiva, com a cabeça voltada para a janela, jaz um corpo desnutrido, definhado, talvez sem forças até para pedir socorro. Mas o rosto está sublime, com leve toque de riso no canto da boca. Quem sabe dona Gertrudes tenha encontrado outro amor, um barqueiro que a leve ao altar de Nossa Senhora? Quem sabe ela não encontre uma janela para nos observar e continuar contemplando as belezas do céu ao por do sol? Quem sabe? Não a conhecia. Nunca trocamos nada além de olhares furtivos na padaria, mas não consigo deixar de pensar em sua história, em como poderia ser diferente se a natureza humana não se baseasse em pré-conceitos e em convenções estabelecidas pela sociedade, em certas regras que às vezes se tornam grades de uma prisão imaginária, mas difícil de se libertar.


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