domingo, 30 de março de 2014

Era sábado, fomos todos blablablar na Casa Amarela

Akira, Vania e Fernando em fotomontagem de Eder Lima (foto: arquivo de Ligia Regina/Eder Lima)



Sempre que numa determinada noite de sábado acaba mais um Blablablá na Casa Amarela – Espaço Cultural, dois sentimentos se misturam em mim. O primeiro é o prazer que revigora minhas energias e quase que me exige que se continue o debate, mesmo depois das luzes apagadas e do cenário desfeito. O segundo é quase o contrário, um desconforto da utopia, que se alitera em outras sensações e provoca um curto-circuito diante da impotência de realizarmos muito daquilo que sonhamos por algumas horas.
O Blablablá nasceu da procura pelo entendimento daquilo que está acontecendo hoje no universo da periferia e da produção cultural independente. Curiosos, nós, da Casa Amarela – Espaço Cultural, cometemos a ousadia de querer decifrar o que é “sarau” e outros fenômenos culturais que permitem o protagonismo do produtor e do artista marginais, sem que sejam vistos pelo viés quase exclusivo do exotismo, do burlesco ou do quixotismo. A periferia sempre teve uma intensa produção cultural com características muito próprias que sempre foram vistas pela mídia “oficial” como algo inusitado, quase como uma visita a um zoológico humano. Logo, quando a vivência das ações desempenhadas, memórias reunidas, troca de experiências e problematizações repensadas entre os convidados do Blablablá, tudo isso realizado num espaço simples por pessoas que vivem e compreendem a realidade social que o senvolve sem romantismo juvenil, serve como mola propulsora para as novas idéias que surgem no calor das discussões que o debate suscita. Identificar e aplicar esse turbilhão de idéias é um dos vetores que norteiam as ações da Casa Amarela.
Para a edição de março, o Blablablá teve como convidados Vânia Cardoso Coelho (escritora – autora de livros como “Os Inocêncios” e “Ritos Encantatórios”, entre outros, e que também é jornalista e docente da Universidade de Guarulhos – UNG, nascida e criada em Itaquera, atualmente vivendo no Tatuapé), Fernando Torres de Andrade (autor do livro de contos “para quando o entulho soterrar os joelhos”, que conhece o Tucuruvi como poucos) e Akira Yamasaki (poeta e produtor cultural, autor do livro “Bentevi, Itaim”, morador do Itaim desde a infância e atuando na região de São Miguel há mais de 35 anos). Akira supriu a ausência de André Marques, cordelista e cantador baiano que, por motivos familiares, cancelou uma turnê que estaria fazendo em Sampa nesta semana.
Se André fez falta, sabemos bem. Mas sabemos também que Akira contribuiu para elevar, com sua história personalizadíssima e sua argúcia nipo-brasileira exarcebada, o nível da discussão para índices estratosféricos.
Fernando apresentou-se contando da experiência de ler preencheu quase a totalidade de sua adolescência, tomando muito do seu tempo, inclusive o de trabalho. Vânia, inquirida sobre o fato de escrever em vários gêneros textuais, contemporizou e reafirmou seu compromisso com a arte e a busca de uma satisfação pessoal durante o ato libertador de escrever.
Akira fez uma explanação detalhada de sua chegada a São Paulo,ainda menino, da primeira experiência como borracheiro, e de como descobriu na escrita a afirmação do ser.  Ligou estes fatos numa linha do tempo, justificando o encontro com outros artistas de São Miguel e região como embrião catalizador de sua expressão que tornava-se, a partir então, arte.
As provocações foram se sucedendo, com a participação ativa da platéia. Fran Nóbrega, Eder Lima, Zulu de Arrebatá, Luka Magalhães, Paulinho Dhi Andrade, Sueli Kimura, Alexandre Francisco, muitos dos presentes problematizaram questões sempre pertinentes com o universo literário e sua produção no âmbito periférico.
Em momento oportuno, Paulinho, também autor, questionou como cada um lançou seu primeiro trabalho. Fernando salientou a dificuldade no contato com as editoras, ao passo que Vânia enfatizou a relação profissional estabelecida já na publicação de sua primeira obra (Ritos Encantatórios, ensaio, pela editora da PUC), enquanto Akira citou a “ação entre amigos” como motivadora de sua publicação, “Bentevi, Itaim”. Três experiências diferentes.
Outro momento de grande relevância foi quando, instados pela Fran que, visitando a Casa Amarela pela primeira vez, teve uma participação muito assertiva. Trazendo para a arena das discussões conceitos como o de beleza, ela acendeu o pavio para uma prolífica conversa. “A beleza é um dogma que todo mundo traz”, sintetizou ela. Ao que Vânia interpelou, “o Belo é mutável conforme a sociedade”. Eder Lima, músico, artista visual e professor, avançou ainda mais no terreno pantanoso do tema. Segundo ele, “o Belo reproduz um pensamento do homem ocidental e está configurado dentro da Filosofia, no campo da Estética”. Akira complementou com outra linha de raciocínio: “fiquei quase 20 anos sem escrever, estava mutilado, exilado... escrevo por necessidade. Não sei o que é Beleza, não sei o que é Poesia. Para mim, Poesia é uma espécie de encantamento”.
Encantamento para Akira, libertação para Fernando, grito para Vânia, fato é que a “poiésis” foi a grande contemplada no Blablablá. A soma de todas as vozes criaram um coro quase uníssono de que independência artística, se há, ainda é um campo a ser conquistado. A produção e – principalmente – a distribuição do produto artístico ainda é o grande calcanhar de Aquiles. E que tudo isso passa pela necessidade onipresente, auspiciosa e emblemática da formação de público.
Finalizado o evento, o blá blá blá continuou pelas salas, corredores e até a garagem da Casa Amarela. Pois idéias, planos, sugestões e motivações não faltam a cada um dos que estiveram presentes. Motivos suficientes para celebrar o encontro, “a arte do encontro”. E também para celebrar a vida, “a arte da vida”.

Escobar Franelas
Vania autografando Os Inocêncios para Ligia Regina (foto Eder Lima)
Foto "oficial" pós-Blablablá (foto: Célai Yamasaki)


Convite confeccionado pela Editora Kazuá para o Blablablá
Plateia atenta (foto: Ligia Regina)




domingo, 23 de março de 2014

Belíssimo presente do amigo/poeta Ivan Neris







Elegia Para Um Tal Sarau

Esse tal Sarau da Casa Amarela,
Vai seguindo, clandestino,
Promiscuo e santo,
Louvando cores, tons e palavras,
Reverberando aos corações,
Batizando crianças e convertendo adultos.
Esse tal Sarau que me ofereceu num dia a face,
Naquela noite de último abraço,
Descreve em linhas desiguais,
A história mitigada de soldados calejados,
Por tantas portas cerradas
E aplausos ocultos.
Em mim as palavras tensas,
E as notas densas dos violões,
Mesmo longe soam chamando,
E me envolvendo em seus tentáculos.
Essa tal Sarau da Casa Amarela,
Também por mim pintada,
Sonho meu que seja sempre uma escada,
Para na foz da alvorada dos sentidos,
Destravar as trancas da sensibilidade,
Naqueles onde ontem, esta parecia morta.

Ivan Neris 21/03/2014

segunda-feira, 17 de março de 2014

Como foi o 22º Sarau da Casa Amarela



Sarau da CA: a foto "oficial" dos que resistiram até o fim (foto Célia Yamasaki)


Convite para o evento (arte de Manogon)
Domingo, 16 de março de 2014, por volta das 9 e meia da noite. Enquanto dirijo numa Jacu-Pêssego semivazia, ouvindo Chet Baker na Eldorado FM (107,3), fico assuntando coisas, todo feliz da vida. “Carácolis, o que foi aquilo?”
“Aquilo”, no caso, foi o Sarau da Casa Amarela, do qual acabara de sair. Intenso, improvisado, delicado, caloroso, inflamado, fraternal, retumbante, vários adjetivos poderiam descrever a sensação do ver, ouvir, falar, tocar, cantar, declamar, apresentar-se no palco miúdo da Casa. Nesse caso, contudo, nenhum adjetivo pode ser aplicado impunemente no singular. E nem isolado. Só vale se estiver inserido num contexto maior, que acentue a experiência lúdica, desbravadora, libertadora, lúbrica, da musa Poesia como amante preferencial na tarde&noite de um domingo muito especial.
O sarau teve como convidado desse mês o cantor e compositor Zulu de Arrebatá. O soulman de São Miguel, porém, não estava sozinho para essa empreitada. Akira Yamasaki, o poeta organizador do evento, convidou três petardos literários para ombrear com Zulu a tarefa de ofertar arte de qualidade para o público.  Foi assim que fomos apresentados aos escritores Márcia Barbieri, Daniel Lopes e Fernando Rocha, que trouxeram para o evento seus livros mais recentes, “Mosaico de Rancores” (romance), “Fruta” (romance) e “Sujeito sem Verbo” (contos), respectivamente. Depois da abertura cheia de suingue e malemolência, a Casa foi agraciada com as apresentações dos três escritores de S. Miguel. Ficamos todos embriagados logo de cara.
Então o microfone foi franqueado aos poetas e cantadores presentes. Tomei a liberdade de iniciar os trabalhos com uma nota de pesar trazida pelo escritor Paulinho dhi Andrade, que nos informara há pouco da passagem para o outro plano do poeta santista Fernando Troncoso, tornado estrela na madrugada deste domingo.
Feitas as reverências, a Amarela começou a receber as cerejas do bolo. Abri a sessão lendo um poema recente, incompleto e sem título, para então liberar o pequeno palco para o desfile de pérolas do naipe de Santiago Dias, Eder Lima, Arnaldo Rosário, Tâmara (do sarau "O Que Dizem os Umbigos?"), nos visitando pela primeria vez, Paulinho dhi Andrade, Seh M. Pereira, Jocélio Amaro, Malungo, Ligia Regina com Eder Lima e Akira, Arnaldo Afonso (do Sarau da Maria), Tiago Bode e Célia Demézio (Santos), Inácio Fitas (do sarau do Bar do Frango), Silvio Luiz (cantando música de Akira e Assis Freitas), Guilherme Maurelli com Tiago “Bode” Araújo, o garoto Melvin (filho do Punky Além da Lenda) mandando um rap do Gabriel o Pensador; Santiago Dias (bisando), Ivanildo Lima e o grupo Os Kabras de Baquirivú (Xavier no baixo, Ronaldo Ferro no violão, Francisco Américo “Quinho” no carrón) acompanhando José Carlos Guerreiro e depois Pérola Negra.
Em algum momento, não lembro bem exatamente quando, o Akira chamou ao palco para dois dedos de prosa o Tião Soares, lendário militante das questões culturais e sociais, principalmente na zona leste da Sampalândia.  Há um prazer quase degustativo em ouvir o Tião falando, que enche-nos de um fervor pela vida e suas belezas, quando discursa. O sarau também presta-se a isso, enxergar arte até num simples recado dado.
Por penúltimo veio Sacha Arcanjo, ladeado por Quinho e Tiago “Bode”, que emocionaram e contagiaram a platéia, que respondeu cantando junto os sucesso do velho baiano. Zulu voltou para o palco para um belo dueto com Sacha, fechando ambos a noite com zíper de ouro.
Quase cinco horas de sarau. E ninguém aparentava cansaço ou fadiga.
Tanto que uma hora depois a Casa Amarela ainda permanecia aberta, e os restantes ainda beliscavam as últimas iguarias da Celinha Yamasaki (destaque para a pasta de berinjela, entre outras petiscarias deslumbrantes), viravam a garrafa térmica no avesso para tirar as últimas gotas de café e compravam as últimas latinhas de cerveja que ainda restavam na geladeira.
Talvez seja por isso que, logo depois, anestesiado pelo jazz que invadia a solidão gostosa no carro, fui transportado para casa, como se estivesse no tapete mágico de Aladim. Pra variar, até a lua cheia me seguia, uivava pra mim.
Tim-tim!

Escobar Franelas
Akira, mestre de cerimônias sem cerimônias (foto Carlos Bacelar)
Big Charlie, presença deslumbrante na CA (foto Sueli Kimura)
Daniel Lopes e seu Fruta (foto Sueli Kimura)
Ms. Barbieri e seu Mosaico de Rancores (foto Sueli Kimura)
Fernando Rocha e o Sujeito Sem Verbo (foto Sueli Kimura)
Zulu de Arrebatá, showman (foto Sueli Kimura)
Público animado (foto Carlos Bacelar)